Autor: Prof. Dr. Marcos Silva (DHI/UFS)
O professor Dilton Maynard convidou-me para comentar este filme em um evento promovido pelo Grupo PET (Programa de Educação Tutorial) que o mesmo coordena na UFS. Trata-se de um Curso intitulado "Neonazismo e Cinema". Confesso que não conhecia a película proposta: Na versão em português chama-se "Tolerância Zero". O nome original é "The Believer". Talvez, a forma preconceituosa como se usa a expressão "crente" no Brasil tenha contribuído para esta designação tão distante do nome em inglês. Para maiores informações você pode acessar o site não oficial que me pareceu melhor.Mas, após assistir ao filme resolvi aquiescer ao convite. Não pelo conteúdo do filme em si, mas para colaborar no fortalecimento do Grupo PET. Eles têm estudado as manifestações do neo-nazismo no espaço cibernético e pensam que eu entendo de judaísmo devido ao meu filo-judaísmo de inspiração cristã-nova.
Bem, depois de aceitar, eu me arrependi porque o tema do filme é complexo e merece um comentarista mais afeito à crítica cinematográfica. Por outro lado, dizer algumas palavras esforçando-se para fugir ao senso comum não faz mal a ninguém!
Ora, me parece que essa coisa de crítica de cinema segue um determinado ritual. Então vamos ao enredo do filme. Trata-se de uma adaptação lançada em 2001 de uma história real transcorrida na década de 1960, escrita e dirigida por Henry Bean. Li uma pequena entrevista dele ao The New York Times dizendo-se judeu e que fizera o filme baseado em seu amor pelo judaísmo: ''The film is also my love poem to my religion".
O filme conta a história de Daniel Balint, um jovem judeu que, quando na adolescência, estudou em uma Yeshiva ortodoxa e, ao atingir a juventude, uniu-se a um grupo de neo-nazistas em Nova York. Uma presepada dessas pode dar certo? Pois não deu mesmo, nem na ficção nem na vida real.
O judeu que inspirou o roteirista foi um tal de Daniel Burros, nascido em 1937 em uma cidade do Estado de Nova York e que, além de possuidor de uma inteligência acima da média era portador de uma instabilidade mental a ponto de ser dispensado do Exército por distúrbios de comportamento. Inclusive três tentativas frustradas de suicídio.
Em tempos de Google, veja abaixo uma foto do dito cujo, conforme publicada em um jornal:
Pois bem, a vida de Daniel Burros foi mais movimentada do que o cinema conseguiu mostrar na pele de Ryan Gosling como Daniel Baling, escolhido para o papel provavelmente por ser mais "gatinho" do que o protagonista original. Veja o ator, em cena do filme, usando o Talit numa Sinagoga:
No final da década de 1950 um ex-piloto da Marinha, George Lincoln Rockwell, fundou o Partido Nazista Americano. Nesta época, Daniel Burros já era admirador de Adolf Hitler e expressava seu ódio aos judeus. Embora trabalhasse com impressão na Queens Borough Public Library mantinha uma atuação no partido fundado por Rockwell. Em 1960, mudou-se para Arlington, Virgínia, passando a morar na sede do Partido Nazista Americano, e fez um juramento de lealdade a Adolf Hitler e George Lincoln Rockwell. Suas esquisitices assombraram até seus colegas defensores da supremacia branca e admiradores de Adolf Hitler. Nesta fase de sua vida, Burros foi preso quatro vezes por ações de vandalismo.
O fato é que apesar da crueldade que revelou, ele não conseguia se livrar totalmente de suas práticas judaicas arraigadas. Nisto, o filme foi fiel aos fatos e soube representar muito bem como a coisa aconteceu: Daniel Baling, assim como Burros, depertou a suspeita de seus companheiros da célula neo-nazista de sua judaicidade. No filme, no momento em que estavam profanando uma Sinagoga ele se esforçou para preservar os rolos da Torah e acabou revelando seu profundo conhecimento do judaísmo. Disfarçou com a manjada obrigação de "conhecer o inimigo".
No final de 1961, Daniel Burros voltou para casa e se juntou a outros neo-nazistas para fundar o "American National Party". Depois, em 1965 uniu-se à Ku Klux Klan e tornou-se governador da organização racista no Estado de Nova York.
Como suas atividades racistas se tornaram notórias, a partir de 1965, agentes do governo passaram a investigar sua vida. Ao descobrirem sua origem judaica perceberam que a única forma de fazê-lo parar seria a exposição pública de sua identidade. Assim, solicitaram a ajuda do New York Times.
O repórter Irving Spiegel foi à Sinagoga onde Daniel Burros fizera o seu bar mitzvah, confirmando assim nos documentos da comunidade sua origem judaica e publicou no dia 31 de Outubro de 1965 na primeira página do The New York Times o seu segredo. No mesmo dia, Daniel Burros suicidou-se com dois tiros: primeiro um no peito e, depois, outro na cabeça. Desta vez ele estava a fim mesmo de se matar. Uma rápida biografia dele você encontra no New York Press. Para seguir o manual do roteirista do cinema de massas, Henry Bean enfeita a coisa com uma atriz teen bem aparelhada fisicamente (Summer Phoenix), filha de um casal, lider de um grupo fascista, e que passa a namorar com o protagonista principal.
Mesmo que alguns críticos hajam identificado na obra uma ausência de profundidade psicológica, o comportamento da mocinha serve para o autor sugerir que por trás dos fascistas empedernidos se escondem desvios sexuais, como o masoquismo e o exibicionismo, e uma admiração recôndita pelos judeus.
Em função disto, após insistência da mesma, Daniel Baling se presta a ensinar rudimentos de hebraico e da liturgia judaica à sua namorada, Carla.
Me parece que no filme as raízes judaicas da ovelha desgarrada afloram com mais freqüência e intensidade do que ocorreu na vida real. O fato é que diversas situações da vivência religiosa de um judeu ortodoxo são representadas no filme: o uso do talit, o manto sagrado de oração, a recitação da Shemah, a oração mais importante do judaísmo, mesmo num contexto inapropriado, o serviço da Sinagoga na hora do Pôr-do-Sol com a subida ao Sefer e, sobretudo, as aulas em uma Yeshiva. Também são mostrados os rolos da Torah que ficam depositados na arca, chamada de Aaron haKodesh, o lugar mais sagrado da Sinagoga. Para conhecer um pouco a estrutura básica de uma Sinagoga, acesse o site da CJB, Congregação Judaica do Brasil.
Após esta apresentação sumária da trama da história pretendo encaminhar algumas chaves importantes para pensar o filme. Primeiro, como não poderia deixar de ser, do ponto de vista histórico. Embora, à primeira vista, o tema da película possa ser original, na verdade este é um assunto recorrente na história judaica. Buscando exemplos em meu tema principal de pesquisa atualmente, os descendentes de judeus forçados à conversão ao Catolicismo romano na Península Ibérica, entre o final da Idade Média e início dos tempos modernos, alguns casos são notórios.
Quando, a partir de Sevilha, em Junho de 1391, uma série de massacres tomou conta da Espanha o clima de pavor entre as comunidades judaicas foi tão grande que ocorreu um grande número de conversões ao catolicismo romano, verdadeiras ou falsas. Em Burgos, o próprio grão-rabino, Salomon Ha-Levi, converteu-se, divorciou-se da esposa que não admitiu tal transformação, tornou-se bispo dessa cidade, sob o nome de Pablo de Santa Maria, e passou a escrever panfletos antijudaicos. Um estudo interessante sobre sua vida e obra você encontra na página da Society For Crypto Judaic Studies.
Juntamente com outro judeu converso, Joshua Ha-Lorki (Jerônimo de Santa Fé), teve um papel ativo em perseguir judeus espanhóis. Assim, o outrora rabino desempenhou um importante papel na perseguição aos judeus da Espanha.
Isto porque, além de Bispo, no reino de Aragão, tornou-se capelão da corte, tutor do filho do rei, chanceler e membro do Conselho real, contribuindo para segregar e despojar os judeus de seus direitos, impedindo-os de exercerem suas atividades econômicas e forçando-os à conversão ao catolicismo. Assim, a perseguição aos judeus por outrora praticantes do culto judaico se manifesta em face de um ambiente social inóspito e vem, pelo menos, desde o fim da Idade Média.
Outra chave, talvez a mais importante, para interpretar o filme se encontra na Psicologia Social. O arcabouço teórico que pode explicar o fenômeno gira em torno do entendimento de como ocorre a formação da individualidade em meio aos processos sociais. Neste particular, George Herbert Mead (1863-1931) apresenta três aspectos necessários para entender este processo: "a historicidade do indivíduo como autoconsciência, ou seja, a anterioridade histórica da sociedade sobre o indivíduo; o desenvolvimento do indivíduo autoconsciente a partir de uma matriz social; e a formação do "Eu" pela adoção de "outro(s) generalizado(s)", atribuída pela incorporação de papéis e pela internalização socio-cultural." Um bom texto sobre o assunto é a dissertação de Mestrado de Renato Ferreira de Souza, que cito aqui. "O emaranhado destas relações sociais ao qual estamos submetidos, é o pressuposto histórico que permite a" formação do eu. Trocando em miúdos, isto quer dizer que o "Eu" é formado e/ou condicionado socialmente, ou seja, na interação com os outros.
Estamos falando aqui de um tal de "paradigma da interação mediada simbolicamente". Este processo de formação da individualidade pode levar a uma crescente autonomia pessoal ou pode ser traumático. Para que a coisa seja sadia, o indivíduo precisa "apropriar-se de sua história de vida de modo crítico: Num ato paradoxal, eu tenho que escolher-me a mim mesmo como eu sou e como eu gostaria de ser." É um ato de auto-escolha, que gera uma forma de existência auto-responsável.
O indivíduo precisa ser idêntico consigo mesmo na vida ética. Precisa aceitar a si mesmo. Quando uma pessoa presta muita atenção para a visão que os outros possuem dela, e quando esta visão é amplamente negativa, esta pessoa pode internalizar esta representação, gerando uma percepção de si danosa, e desenvolver uma coisa chamada de "auto-ódio." O auto-conceito depende bastante da maneira como o indivíduo interpreta as reacções e opiniões das pessoas preponderantes do seu meio.
Por outro lado, a linguagem e os símbolos cultivados por uma sociedade podem desempenhar um papel significativo na criação de estigmas contra determinados grupos étnicos. Como é comum saber, a sociedade Ocidental cultiva uma cosmovisão com aspectos intrinsecamente anti-semitas. De tal forma que os estereótipos negativos sobre os judeus fazem parte da cultura em que todos se formam, tanto os não judeus como os judeus, impregnando-os e impactando-os.
Dentre os estereótipos, coexistem contradições: Se, por um lado, existe o mito do poder judaico, de seu desejo de governar o mundo, por outro lado, existe também o seu contrário, o mito do judeu vulnerável.
Quando confrontados com estes estereótipos anti-semitas a maioria dos judeus se desfaz facilmente destas imagens falsas. Mas, alguns internalizam os clichês e outros chegam mesmo a se identificar com o opressor. Aprofunde este tema aqui. Assim, como afirma Carlo Ginzburg na Introdução de sua História Noturna: "Por meio da introjeção (parcial ou total, lenta ou imediata, violenta ou aparentemente espontânea) do estereótipo hostil proposto pelos perseguidores, as vítimas acabam perdendo sua identidade cultural própria".
Assim, como diz o autor do texto linkado acima, a ironia da vida de personagens como Daniel Baling é que ele se tornou um exemplo da principal e maior vítima judaica: o judeu que confessa que a fantasia doente na mente do anti-semita é a verdade.
Fonte: http://silva.marcos.sites.uol.com.br/hipertexto2.htm acesso em: 19 de abril de 2010